top of page
  • Foto do escritorDiálogos Humanistas

UMA ANÁLISE EXISTENCIAL DE “BIRDMAN – THE UNEXPECTED VIRTUE OF IGNORANCE”

Por Iolanda Aguiar e Oliveira

18 de maio de 2018


“- And did you get what you wanted from this life, even so?

- I did.

- And what did you want?

- To call myself beloved, to feel myself beloved on the Earth”.

Raymond Carver



"Birdman – The Unexpected Virtue of Ignorance” foi lançado em 2014 e dirigido por Alejandro González Iñárritu. É um filme metalinguístico que retrata a história de um ator, Riggan Thompson, que fundou sua carreira artística numa personagem interpretada por ele, protagonizando a estória de um super-herói. A obra que o lançou no estrelato tratava-se, portanto, de uma fantasia cujo único propósito era o entretenimento. A carreira do ator ficou estigmatizada por essa personagem e ele passa a se perceber aprisionado a um estereótipo que o público atribuiu a ele. "Birdman – The Unexpected Virtue of Ignorance” apresenta a sua missão de consolidar uma carreira artística relevante e significativa que superasse o seu passado e que pudesse elucidar o seu potencial. Não por acaso, Riggan Thompson é interpretado por Michael Keaton, ator que viveu o mesmo dilema em sua vida real após atuar em Batman (1989) do diretor Tim Burton.

São perceptíveis as homenagens e referências diversas no filme, inclusive à obra “Pierrot Le Fou” dirigida por Jean-Luc Godard (reconhecido por suas temáticas existencialistas) na qual há críticas a Hollywood e às suas produções vazias de profundidade. A mesma crítica se apresenta em "Birdman – The Unexpected Virtue of Ignorance” ao mostrar a tentativa de Riggan Thompson de superar a superficialidade na qual se aprisionou após sua atuação enquanto um super-herói.

A jornada de Riggan Thompson é a adaptação de um livro de Raymond Carver a uma peça de teatro a ser exibida na Broadway, intitulada "What We Talk About When We Talk About Love", a qual ele dirige e atua como protagonista. A estória da peça que ele adapta e interpreta é uma saga existencial de um homem que busca a qualquer custo o amor do outro e que ele descobre não ter. Como desfecho, ele se suicida após constatar a sua desesperança por ser amado.

Obcecado por obter o prestígio profissional e pessoal, o protagonista se vê dedicado completamente à sua peça de teatro. Há uma entrega e uma aposta que o leva a investir tudo o que tem financeira e pessoalmente. Percebe suas relações se desintegrarem em meio à realização desse projeto do qual sente que não pode abrir mão. Seu objetivo era livrar-se da imagem atribuída a ele por um passado que ele sente não correspondê-lo. A sua busca, entretanto, não se faz plena de autenticidade haja vista que a construção do self que ele intenta ainda é referenciada na expectativa que o outro faz dele ou na quebra de expectativa que ele quer apresentar ao outro. Ele pretende se mostrar de modo diferente do que se espera dele e digno de um valor que apenas o outro pode atribuir a ele: a admiração. Dito de outra forma, ele permanece dependente do outro. Um outro que não é um indivíduo, mas uma massa.

Ao mesmo tempo, Riggan Thompson já não é mais a celebridade que um dia foi e é confrontado com a realidade de que a popularidade não é sinônimo de prestígio. Ainda que ele verifique em sua vida sinais dessa dita popularidade, ele quer superá-la. Segundo a própria personagem, Thompson quer fazer de sua vida, por meio da peça, algo que tenha um real significado. Saindo do universo cinematográfico, ele quer explorar o mundo do teatro, que não lhe é familiar, e se depara com diversos obstáculos que o fazem se questionar se de fato é digno do prestígio que intenta, concordando com sua percepção íntima de fracasso pessoal e fazendo-se desacreditar que está construindo algo de real significância.

Riggan Thompson convive com uma alucinação auditiva que possui a identidade do super-herói que ele quer abandonar. O seu “birdman” interior o confronta em sua escolha de ter abandonado o mundo das celebridades em detrimento de um projeto que por vezes lhe parece impossível. É a voz que o orienta a desistir de seus planos e retornar àquilo que lhe é seguro, ainda que não seja autêntico. Pode-se dizer ainda, que a voz questiona a autenticidade do seu projeto de se mostrar digno de valorização e da admiração do outro.

O fracasso que teme lhe é apresentado não como possibilidade futura, mas como realidade presente. Na relação com sua filha, Thompson vive a culpa de ter sido ausente e se sente responsável pelas falhas dela. Ela, por sua vez, não amortece a sua culpabilidade e evidencia a ele o egocentrismo de suas ações e a vaidade de seu projeto. Explicita a ele que seu real objetivo é sentir-se relevante novamente e que sua motivação pouco tem a ver com a arte que ele diz valorizar. Além disso, ela afirma a ele que não há nada de especial na sua motivação e que sentir-se relevante é o objetivo de todo ser humano, que o seu projeto se fundamenta no medo que ele tem de não ser importante e que, talvez, ele não o seja. O objetivo dela não é causar a ele dor, mas fazê-lo encarar o absurdo da falta de sentido da existência humana e, portanto, a da existência dele próprio e do seu projeto.

A estória discorre por várias apresentações que configuravam a pré-estreia da peça dirigida por Thompson. Em cada uma das apresentações, ocorrências diversas faziam com que ele perdesse as esperanças de atingir o objetivo pretendido. O acaso interfere em seus planos diversas vezes e ele se sente debochado, exposto e humilhado – e não respeitado como pretendia. Ele se sente um ator medíocre agarrado aos últimos vestígios da carreira que um dia construiu. Sente que a peça é uma versão deformada dele mesmo, como afirma.

No terceiro ato do filme ameaças externas surgem afirmando a falta de valor e a superficialidade de seu projeto. Afirma-se que Thompson representa uma categoria de pessoas centradas em si mesmas, que não abrem mão de ter seus desejos atendidos, que exigem tratamento diferenciado, que são prepotentes e presunçosas e que dão valor ao material desprezando a arte. Sua peça é vista simplesmente como uma tentativa de autopromoção, sem valor artístico, e ele, então, se vê aterrorizado diante da possibilidade de ser destruído pela crítica.

Ainda que ele entenda que a crítica seja um lugar confortável de pessoas que não se encorajam a realizar o seu próprio trabalho artístico, mas se constroem sob a identidade daqueles que rotulam os outros, ele se sente amedrontado. A crítica, o olhar do outro, proporcionou a ele tudo o que ele quer negar, mesmo que seja por meio desse mesmo olhar que ele pretenda se reconstruir. Ele compreende a falta de valor do rótulo e teme permanecer refém do mesmo. É exatamente essa ameaça, esse medo que faz despertar nele o auge do seu desespero, fazendo o seu “birdman” interior falar mais alto. Ele já não tem mais a expectativa de construir para si uma nova identidade, rompendo com o lugar de vítima da crítica, do rótulo, do olhar do outro. Nesse momento, não apenas o seu projeto perde o sentido, mas sua própria vida.

Passado esse momento de crise e caos interior, Riggan Thompson se apresenta na estreia de "What We Talk About When We Talk About Love". Ele transparece calma e, num diálogo com sua ex-esposa, que acontece no intervalo da peça, ele conta que no passado tentou tirar a própria vida motivado pelo fato de se sentir um fracasso em sua vida pessoal e na relação com ela e com a filha. Nesse momento, então, observa-se que o seu descontentamento com a vida não é recente e não se dá apenas no aspecto profissional. Encerrado esse diálogo, ele se dirige ao palco para realizar a última cena da peça que se encerra com o suicídio do protagonista.

Durante a estória, após flagrar sua esposa com um amante, o protagonista (que é a versão deformada de Riggan Thompson) pergunta: “Por que preciso implorar para que as pessoas me amem? Eu só queria ser aquilo que você queria que eu fosse. Agora eu passo os meus dias tentando ser alguém que não sou. Eu não existo. Eu sequer estou aqui.” Nesse momento, Thompson, que carrega consigo uma arma real, tenta tirar a própria vida no palco, diante do público de quem ele requereu o amor por tanto tempo, por quem ele fingiu ser quem não era, entendendo que buscava ser quem o público queria que ele fosse. Ele próprio (não apenas a personagem que interpreta), portanto, não sabe quem é, não sente que existe e, nesse desespero, atira em si mesmo numa tentativa fracassada de se matar.

A sua falha culmina numa percepção positiva do público e da crítica que o rotulam de hiperrealista. Thompson consegue a visibilidade que intentava, mas já não dá mais o mesmo valor ao olhar do outro. Nesse momento, se liberta do aprisionamento da percepção do outro sobre ele. A cena final sugere que ele se encontra em tamanho estado de leveza e liberdade que, como um homem pássaro, pode voar.


A ANÁLISE DA JORNADA:

Em “Questões de Método”, Sartre apresenta uma metodologia de psicanálise existencial e faz um ensaio de análise sobre Gustave Flaubert (que pode ser encontrada com maiores detalhes em “O Idiota da Família”) explicitando que na criação de um autor está implícita a sua própria história e suas projeções pessoais, em poucas palavras.

A obra formula questões à vida. Mas é necessário compreender em que sentido: com efeito, a obra como objetivação da pessoa é mais completa, mais total do que a vida. Com toda a certeza, enraíza-se nela, ilumina-a, mas só encontra sua explicação total em si mesma (Sartre, 2002, p. 108).

Sob essa compreensão, pode-se afirmar que a escolha de Riggan Thompson por adaptar a peça intitulada "What We Talk About When We Talk About Love" e interpretar o seu protagonista, então, não pode ser senão uma projeção de si mesmo: um homem que projeta sua vida na busca do amor, do prestígio e admiração dos outros e que, sentindo-se fracassado em seu propósito, se depara com o absurdo da existência e escolhe não mais viver.

A peça de teatro representa a forma por meio da qual o ator busca realizar o seu projeto. Sartre compreende que “o homem caracteriza-se, antes de tudo, pela superação de uma situação, por aquilo que consegue fazer do que foi feito dele, embora nunca se reconheça em sua objetivação” (2002, p. 77). No filme, Thompson quer superar a percepção que o público tem sobre ele enquanto um ator mediano, incapaz de atuar em papéis de significativa profundidade. Em diferentes momentos, observa-se que ele tenta negar o seu objetivo, protegendo-se por detrás do discurso de valorização à arte.

Sartre (2015), em sua obra intitulada “O Ser e o Nada” afirma a possibilidade de todo ser humano viver num projeto de má-fé (recusar a si mesmo e negar a responsabilidade por suas escolhas). Por essa perspectiva é possível esclarecer que Thompson, no momento de sua vida retratado em Birdman, havia adotado para si o estigma que lhe foi atribuído no passado, e o seu projeto de má-fé constituía-se em responsabilizar o outro (o público e a crítica) por aquilo que foi e que queria vir a ser, numa negação de sua autonomia. Ele, então, queria superar sua situação, resignificar aquilo que foi feito dele, numa relação incongruente de dependência do outro, entregando ao outro a condição de definir aquilo que ele era.

Viktor Frankl (2008) afirma que

a busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida, e não uma ‘racionalização secundária’ de impulsos instintivos. Esse sentido é exclusivo e específico, uma vez que precisa e pode ser cumprido somente por aquela determinada pessoa. Somente então esse sentido assume uma importância que satisfará sua própria vontade de sentido (p. 124).

O sentido da vida de Thompson caracteriza-se por se tornar um ator admirado, e prestigiado. Ele se mobiliza por inteiro na direção da realização desse sentido que, por outra perspectiva, não pode ser cumprido apenas por ele mesmo, haja vista que seu propósito não se faria concreto, senão em relação. O problema aí instaurado é que a admiração e o prestígio são nascidos na percepção do outro de que aquele indivíduo é digno de valor. Portanto, para que Thompson realizasse o seu sentido, precisou se colocar à disposição do juízo de valor que o outro fazia ou faria sobre ele, se colocando numa posição de vulnerabilidade que é explorada na obra. Ao se deparar com as ameaças externas (os olhares inclinados à desvalorização da sua performance), Thompson passa a compreender o seu projeto como impossível, o seu sentido como sem sentido, já que ele não define ou controla a percepção alheia. Experimenta, portanto, o que Frankl nomeia como frustração existencial.

A jornada de Thompson tem a aparência de um movimento existencial saudável na direção do desenvolvimento pessoal. Contudo, verifica-se que ele se encontra num estado de confusão em que não tem convicção sobre quem ele pretende ser. Ele é atormentado por sua alucinação auditiva, cuja voz é da personagem “Birdman” que o levou à fama e a qual ele recusou quando se negou a atuar nos filmes seguintes, que dariam continuidade à saga da personagem. O “Birdman”, na concepção de Thompson, representa o sucesso e a fama aos olhos do público, mas para ele, é uma mentira que ele quer superar. Em meio ao seu caos interior, ele reluta entre o arrependimento de ter deixado para trás a mentira que havia lhe trazido ganhos materiais e egóicos e a obstinação na busca por uma verdade sobre si mesmo. O “Birdman” que sussurra em seu ouvido, o convida a retomar os caminhos escolhidos no passado enquanto Thompson assiste o seu empreendimento fracassar, apesar de toda sua entrega e aposta.

Viktor Frankl (2015) explica que “o homem só é capaz de realizar-se à medida que cumpre um sentido” e que “(...) só propende para a autorrealização o homem que antes de tudo fracassou no cumprimento do sentido, e que talvez nem sequer fosse capaz de encontrar o sentido que vale a pena realizar” (p.66). Por essa compreensão, observa-se que a busca por sentido de Thompson acontece após a sua conclusão de que o sentido antes determinado não o corresponde. A problemática se dá quando ele se depara com a não realização do novo sentido, ainda que não fosse pleno de autenticidade. Sua frustração existencial, ou seja, o “sentimento de ausência de sentido da própria existência”, se configura não frustração da expectativa de ver realizado o devir que escolheu para si: os caminhos nos quais apostou para alcançar o prestígio e a admiração o levam, a partir dos aspectos que fogem ao seu controle, a um fim oposto – a humilhação e o deboche. Assim, ele se depara também com o absurdo da vida.

Frankl (2015) também elucida que “os suicídios podem ser atribuídos, em última instância, àquele vazio que corresponde à frustração existencial” (p. 69). Camus (2013), por sua vez, afirma que

matar-se, em certo sentido (...) é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos (...) Trata-se apenas de confessar que isso não vale a pena (...) Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário, é propriamente o sentimento do absurdo (p.21).

Camus (2013), afirma que no movimento da vida há um momento do despertar para o seu sentido. Quando o indivíduo se questiona sobre o por quê da vida, pode nascer daí a constatação do absurdo. “Pode” por que há a possibilidade de não se sustentar o questionamento. Contudo, quando ele se sustenta, permanece sem resposta e constata-se o absurdo. Diante disso, resta ao homem duas possibilidades: reestabelecer-se ou suicidar-se.

Thompson vive, assim, a frustração existencial e se depara com o absurdo da existência. Lembrando que o momento retratado pelo filme já é a tentativa do protagonista de se resignificar, falta a ele recursos para se reestabelecer. Ironicamente, após ter lidado com seus fracassos e concluir ser impossível conviver com a consciência dos mesmos, Thompson atenta contra sua própria e, mais uma vez, falha. A crítica e o olhar do outro aplaudem a sua tentativa de dar fim à própria vida, indicando que desistir do seu projeto presente, assim como do seu devir, é o que lhe faz digno de reverência. Ao tentar acabar com sua existência é que ele alcança o seu ideal e, no momento em que isso acontece, já não identifica mais o sentido do projeto, da sua vida e da existência humana.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Camus, Albert. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2013, 3aEd.

Frankl, Viktor. Em Busca de Sentido. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2008, 37aEd.

Frankl, Viktor. O Sofrimento de uma Vida Sem Sentido. São Paulo: É Realizações, 2015, 1a Ed.

Sartre, Jean-Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petropólis, RJ: Ed. Vozes, 2015, 24a. Ed.

Sartre, Jean-Paul. Crítica da Razão Dialética: precedido de Questões de Método. Rio de Janeiro: Ed. DP&A, 2002.


No vídeo abaixo, assista ao trecho da entrevista que Michael Keaton faz ao canal Digital Spy, em que ele fala das semelhanças entre a experiência vivida por ele próprio e a experiência de Riggan Thompson:




2.659 visualizações2 comentários

2 Kommentare


docfreitas
21. Feb. 2023

Tinha procurado ler sobre o filme porque não tinha compreendido o final. Excelente análise, tornou o filme mais interessante. Realmente é um conflito interno entre o "eu verdadeiro", a imagem que queremos criar de nós mesmos e a opinião dos outros. Que bom que o personagem encontrou a paz e o equilíbrio. Seria bom que todos pudessem encontrar seu significado na vida o mais cedo possível.

Gefällt mir
iolandaagol
17. Feb.
Antwort an

Um ano depois, eis que vejo seu comentário sobre o texto. Fico muito feliz que tenha gostado. Esse não é um filme que deixa tudo muito às claras. Ele consegue nos transmitir a confusão do protagonista e acho que por isso o final não é óbvio. Aliás, eu acho que o final dá margem a muitas interpretações. A minha é uma possível. Fico feliz com sua apreciação. Pretendo fazer outras análises de filmes como esse. Espero que volte para lê-las! Um abraço!

Gefällt mir
bottom of page