Terapeuta não chora
- Diálogos Humanistas
- 7 de jul. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 11 de jul. de 2020
Por Iolanda Aguiar e Oliveira
07/07/2020
Foi o que me disseram. Mas à essa época já era tarde. Eu já tinha visto minha terapeuta chorar. E foi comigo, por mim, no consultório dela. Eu sequer me lembro como ou porque, mas ainda lembro daquela sensação de conexão entre a gente. Era como se ela pudesse compreender o que eu dizia para além das palavras, como se a gente estivesse compartilhando algo que não se pudesse mesmo descrever. Algo da experiência, para a qual palavras nunca serão suficientes.
Aconteceu comigo. Essa única vez. Até que foi a minha vez de ser terapeuta.

A princípio eu tinha para mim que a figura da terapeuta tinha que ser de difícil, senão impossível, tradução. Entendia que durante a terapia as emoções do terapeuta deveriam soar como um enigma para o cliente (ou paciente, se você preferir). Até que eu me deparei com a ideia de que o terapeuta precisa ser congruente e autêntico. Ainda assim, chorar não cabia ao terapeuta. Eu fui para o consultório e descobri que, às vezes, mesmo que eu faça muita força, o choro é inevitável e pode ser potente. Te conto porque...
Eu sou daquelas pessoas serenas, que não se aborrece por qualquer razão. Vejo nisso um atributo meu, porque sou serena, mas não sou passiva, nem intocável. Muito pelo contrário. Sou serena, mas adoro sentir. Os afetos, as emoções, os sentimentos são aquilo que me faz sentir viva! Uma das razões pelas quais a terapia me foi importante é porque eu sempre senti tudo intensamente, desde criança. A serenidade foi uma construção feita em boa parte durante meu processo terapêutico. Foi aprendendo a reconhecer, nomear e aceitar o que eu sinto que eu encontrei essa serenidade. E aprendendo a lidar com o que sinto e a reconhecer a pessoa que sou, desenvolvi a capacidade de me entregar à experiência de me colocar no mundo do outro, sem deixar de reconhecer o caminho de volta para o meu.
A empatia parece ter sempre existido em mim. Quase como uma condição genética. Quando criança, eu morava no Centro de Belo Horizonte. Minha mãe conta que quando eu tinha menos de dois anos, ela me levava à padaria e a gente sempre encontrava uma senhora idosa, moradora de rua, que ficava pedindo ajuda na porta da Igreja. Sempre que me via, a senhora abria os braços e me convidava para um abraço. Eu corria para ela como quem corre para um abraço seguro. Eu não a conhecia, mas respondia ao desejo dela de ser vista e afagada. E se minha mãe não me arrancasse dos braços dela, não cumpriria sua missão de ir à padaria.
Quando virei terapeuta, essas duas características me acompanharam no consultório. Com elas, pude me sentar e ouvir serenamente as pessoas, com uma curiosidade sempre presente e que me favorece a escuta sem julgamentos. Acontece que a minha empatia tão própria, e essa abertura que faz parte dela, me permite sentir muito fielmente a experiência dos meus clientes manifesta diante de mim (pelo menos é o que eles demonstram experimentar). Até que um dia - que penso nunca mais poder esquecer - uma moça linda (de todas as maneiras possíveis) me contou sobre o seu passado doloroso. Ela relatou uma vivência que ainda doía como se fosse atual, presente. E ela chorou. E eu não me aguentei, chorei junto. E foi ali que o nosso vínculo aconteceu quase como um ferro soldado que só se rompe com muita força e ferramentas adequadas.
Aprendi que terapeuta chora, mas não chora à toa. A gente ocupa um lugar de contemplação. Não puramente contemplativo, mas uma contemplação que busca sentido e significado. Às vezes a gente se esbarra com a beleza. Por exemplo, uma madrasta que luta bravamente pelos filhos que não são seus. Às vezes a gente se depara com a dor, quando alguém se dá conta do valor do que perdeu. Outras vezes a gente vive o amor, quando uma esposa percebe a riqueza da relação que tem com o marido. A gente encontra a realização em quem identifica seu próprio crescimento. O sentimento de fracasso, quando alguém se encontra no seu pior pesadelo. A esperança, naqueles que desesperaram e acharam novas razões para recomeçar. Quão rígida e dura eu seria se eu não me emocionasse depois de testemunhar toda essa sorte de experiências acontecendo bem diante dos meus olhos com pessoas reais? E se o olhos marejam, as lágrimas correm? E então, eu me sinto tão real quanto elas. E a pessoa diante de mim percebe e agradece por isso. Porque ninguém se senta no meu sofá para falar com meus conhecimentos científicos e filosóficos. Elas se sentam ali para encontrar uma pessoa tão real quanto elas.
Para mim é um privilégio viver a experiência dos outros, mesmo que na minha imaginação, mesmo que por pura empatia. É como se eu vivesse diferentes vidas. E em cada uma dessas vidas eu vou achar motivos para chorar junto. Eu tenho uma clareza plena de que a dor que eu sinto não é minha. Sei que a terapia não é sobre mim. É sobre a pessoa. Mas a experiência dela ressoa em mim. E eu sei que ela me buscou enquanto terapeuta porque queria um lugar seguro onde pudesse ser si mesma. Posso oferecer um lugar melhor do que esse? Um lugar em que ela pode ser quem ela quiser, ser de verdade, e vai achar ali companhia de alguém com a disposição para ser de verdade com ela?
Já me disseram que essa exposição que eu faço é um risco. E é mesmo! Um risco de sentir demais. Mas eu ainda não encontrei justificativas teórico científicas que combatam suficientemente a minha experiência. Ela me diz que sentir junto, e às vezes chorar junto, tem poder.
A minha emoção empática expressa em lágrimas é um reconhecimento potente da outra pessoa. Eu faço minhas as lágrimas alheias. E quando a gente se olha, olhos marejados nos olhos marejados, eu mostro que entendi para além daquilo que disse a boca. E que eu percebi, reconheci, senti e compreendi a outra pessoa muito mais do que com o meu cérebro, mas com meu corpo e com a minha alma. Por tudo isso, ainda não achei explicação suficiente que me faça deixar de chorar junto. Se a vontade vier, se o momento permitir. Porque se eu choro a emoção do outro, logo, ele existe.
"Terapeuta não chora", dizem por aí.
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