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SER (SOCIAL) OU NÃO SER? O dia em que o coronavírus trancou a porta da minha casa.

Foto do escritor: Diálogos HumanistasDiálogos Humanistas

Por Iolanda Aguiar e Oliveira

23/03/2020



Não é novidade que somos seres biopsicossociais. Mas o que isso significa? Que somos constituídos por um corpo fisiológico, um mecanismo psicológico e parte de um coletivo. Esse coletivo, chamado “social”, existe porque co-existimos em relação. Em contato uns com os outros, nos influenciamos mutuamente. Mais do que isso: somente existimos se houver o outro como referência para confirmar o que somos ou o que não somos. Quando nascemos, aprendemos a viver e a sobreviver assistindo o nosso grupo familiar. Aprendemos com eles nossos valores, nossos princípios, nossas crenças, comportamentos, etc. À medida que crescemos e nos desenvolvemos, nossos grupos se expandem e se diversificam: a escola, a comunidade, a igreja, a faculdade, o trabalho, etc. Das pessoas que compõem esses grupos obtemos novas referências que incorporamos ou não à nossa identidade, à pessoa que somos e/ou queremos ser.

Somos humanos porque somos assim: seres que só existem e só subexistem em coletividade. Não é por um acaso que as prisões tem como a pena máxima o confinamento em solitárias. Entre 1993 e 2013, o psicólogo americano Craig Haney[1] fez uma pesquisa com detentos da Penitenciária Estadual de Pelican Bay condenados à solitária. Os danos psicológicos experimentados por esses detentos e verificados pelo pesquisador eram graves. Alguns deles chegaram ao ponto de questionar sua própria existência. Outros conversavam com as fotos de seus familiares para aliviar a solidão.

O psicólogo relata que a experiência desses detentos era de muita tristeza em função do luto que viviam por suas próprias vidas, pela perda do contato social. Eles sabiam que o isolamento os havia tornado pessoas diferentes das que eram, mas a ausência do convívio com outras pessoas os impedia de saber quem era a pessoa na qual haviam se tornado. Sartre afirma, em “O Ser e o Nada”:

“O Outro é mediador indispensável entre mim e mim mesmo [...] Assim, o Outro não apenas me revela o que sou: constitui-me em um novo tipo de ser que deve sustentar qualificações novas. Este ser não estava em mim em potência antes da aparição do Outro”. (2015, p. 290)[2]

Em outras palavras, para Sartre, para sermos quem somos, precisamos do outro para que ele nos mostre quem somos. E quando enxergamos quem somos, imediatamente nos transformamos e nos fazemos quem somos.

A necessidade do contato é tão real que inventamos ferramentas para diminuir as distâncias. A primeira delas foram as cartas, depois os telefones, os telefones celulares, e-mails, SMS, redes sociais, chamadas de vídeo. Hoje podemos falar em tempo real com praticamente qualquer pessoa de qualquer parte do mundo. Podemos vê-las, se quisermos, mas não podemos tocá-las.

Nós existimos no mundo através dos sentidos. É por meio deles que experimentamos o mundo e nos sentimos parte e à parte do nosso entorno. É no mundo que nos sentimos indivíduos e coletivos, simultaneamente. A experiência do tato, do toque, do acolhimento físico é necessária à formação de qualquer pessoa. Por meio do toque comunicamos mais do que palavras, muitas vezes: um abraço que consola, um beijo que demonstra amor, um aperto de mãos que sela um vínculo.

Mas a nossa vida social está (temporariamente) ameaçada. Vivemos uma época em que estamos convocados ao isolamento. Vivemos uma época em que a solidão é imperativa. Vivemos um momento em que para garantir a sobrevivência, inquestionavelmente necessária do nosso corpo físico, precisamos abrir mão do que nos torna humanos: o aspecto social da condição humana. Diferentemente dos detentos de Pelican Bay, não estamos blindados de toda e qualquer forma de contato social. Podemos nos valer dos recursos tecnológicos que criamos justamente para aliviar a solidão. E eles funcionam. Mas apenas aliviam, não a extinguem.

O convite aqui agora é de reflexão sobre um futuro não tão distante. Ainda estamos buscando maneiras de preencher o nosso tempo e nos distrairmos do mal-estar da falta de contato. Ainda não nos entediamos o suficiente para nos sentirmos saturados do confinamento. Mas e se esse momento chegar? E se a necessidade de contato físico se tornar predominante? E se não pudermos saciá-la?

A maior parte de nós está habituada a circular pelas cidades. Aliás, nos últimos tempos tem havido um convite para ocuparmos o nosso espaço, expandir nossas possibilidades explorar o mundo. Nos acostumamos a essa ideia. Não é por um acaso que os restaurantes, bares, cinemas e outros estabelecimentos estão sempre abarrotados. Algumas pessoas trabalham muitas horas da sua semana para experimentar esses parcos momentos nos fins de semana. Agora, não mais. Por tempo indefinido, devemos evitar sair das paredes da nossa casa.

Se nos encontramos, não devemos nos tocar. Senti isso logo no primeiro dia de quarentena no meu consultório, quando não pude abraçar as pessoas que chegavam para a terapia. Não pude dar o meu corriqueiro abraço de boas-vindas ou o abraço de aconchego que nutre de calor um coração angustiado. Nossos abraços passaram a ser potenciais transmissores de uma arma letal e invisível. Deixaram de ser um gesto de afeto e passou a significar comportamento de risco.

Nos primeiros dias, tudo estava bem. Todos estavam bem, apesar das orientações de não sair de casa. Alguns otimistas viram a oportunidade de cuidar de si, cuidar do seu lar, curtir o que não curtem com tanta frequência. Notícias daqueles que estavam aproveitando para exercitar os dotes culinários, daqueles que fizeram em casa os reparos há tanto adiados, dos que atualizaram a faxina, fizeram as unhas, pintaram os cabelos, terminaram aquele livro de leitura inacabável. Cheguei a pensar que as pessoas não iriam aderir à terapia online, que elas estavam lidando muito bem com tudo isso.

Minhas previsões se equivocaram. A semana mal começou e a agenda do consultório começou a se movimentar. As pessoas começaram a experimentar algum tédio. O tempo ocioso começou a criar oportunidades para os fantasmas emocionais se manifestarem. A ausência de contato começa a preocupar. Os hipocondríacos deixaram de seguir as notícias como estratégia de sobrevivência. Outros sofrem empaticamente com as notícias de morte mundo afora. Alguns se indignam, se revoltam. Os efeitos estão apenas começando a se revelar. Mas ainda há possibilidade de se lidar com as afecções de todo esse momento.

Algumas pessoas lidam melhor com a solidão: é característico de sua personalidade. Mas essa não é a realidade de muitas pessoas e ainda existem as particularidades de cada caso: há quem esteja em companhia, há quem esteja completamente só. Algumas pessoas estão acompanhadas, mas não tem relações saudáveis com suas companhias. O isolamento pode agravar a convivência, pode estressar as pessoas envolvidas, pode causar danos a todos. Algumas não tem um contato caloroso com suas companhias, outras são muitas reservadas. Em outras palavras, para alguns a solidão pode ser experimentada de uma forma ainda mais dolorosa: sentir-se solitário em companhia. Outros estão completamente sós. Alguns sequer estabelecem contatos virtuais, em função de suas limitações ou dificuldades pessoais. Essas são as pessoas que não enxergamos e talvez sejam aquelas que mais demandam cuidados.

Por todas essas razões o isolamento e o confinamento são tão preocupantes. As contribuições dos profissionais da psicologia são agora mais importantes do que nunca foram. Talvez seja necessário, inclusive, que seja dada a eles a condição de atuarem preventivamente. A psicoterapia tem o propósito de criar o melhor ambiente possível para que tenhamos as melhores condições de desenvolvimento. Não é a hora de esperar a angústia apertar, o tédio nos dominar. É hora de nos valermos desse espaço para continuarmos no melhor curso possível do nosso desenvolvimento. Precisamos cuidar de nós para que possamos cuidar do outro. É hora de sermos presença para nós, para que sejamos presença para o outro.


[1] Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/new-york-times/estudo-revela-efeitos-do-confinamento-solitario-prolongado-26hoqo3cpq0pux9bcdjg2nb2o/ [2] Sartre, J.P. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Ed. Vozes: Petrópolis, 2015, 24ª ed.

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