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"A GAROTA IDEAL": e se ao invés de mais manicômios houvesse mais amor?

  • Foto do escritor: Diálogos Humanistas
    Diálogos Humanistas
  • 18 de mai. de 2020
  • 6 min de leitura

Por Iolanda Aguiar e Oliveira

18/05/2020



No dia 18 de Maio celebra-se no Brasil o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Trata-se de um movimento que carrega no seu cerne a ideia de que os ditos transtornos mentais são formas de existir no mundo. Formas essas que, quando se destacam por suas peculiaridades, causam estranhamento, são chamadas de loucura. Como tudo o que causa estranhamento, ela provoca medo. E por que provoca medo, queremos afugentar, excluir, tirar do convívio, institucionalizar. A Luta Antimanicomial surge, então, como uma forma de protesto, de pedido de inclusão no convívio social dessas pessoas que manifestam modos de existir tão peculiares, mas que em muitos aspectos se assemelha tanto a cada um de nós. Ela pede que nós façamos um exercício de abertura para aceitar a idiossincrasia que habita cada ser humano.

Para ilustrar uma vida em que é possível a inclusão e a convivência com o peculiar, diferente, distinto, idiossincrático, resolvi falar de uma estória muito comovente. O longa metragem “A Garota Ideal” (Lars and The Real Girl), dirigido por Craig Gillespie e distribuído pela MGM Distribution Co., é protagonizado por Lars (atuação de Ryan Gosling), um homem tímido e solitário que mora na garagem da antiga casa dos seus pais, na qual residem seu irmão, Gus (Paul Schneider) e sua esposa Karin (Emily Mortimer).

Lars é jovem, bem aparentado, vaidoso, religioso, trabalhador, porém extremamente tímido. Seus dias são vividos em intensa solidão. Não tem disposição para interagir com as pessoas ao seu redor e não tem amigos com os quais convive. Seus contatos se resumem ao contexto profissional onde, ainda assim, Lars não tem a inclinação para estabelecer diálogos. Preocupados com o seu isolamento, o irmão e a cunhada de Lars, Karin e Gus, fazem insistentes convites para que ele frequente a casa deles e estabeleça com eles um convívio mais frequente. Lars, tenta driblar as investidas da família a todo custo, mas acaba se vendo encurralado.

Na igreja, Lars restringe o seu contato a um pequeno público idoso, em particular uma senhora que enfatiza seus atributos e o incentiva a encontrar uma companheira. Certo dia no trabalho, um colega apresenta a ele um site que comercializa bonecas sexuais realistas. Elas são anatomicamente semelhantes à uma mulher real e podem ser personalizadas na cor dos olhos, os cabelos, dentre outras características.

Numa noite qualquer, Lars toca a campainha da casa do irmão e relata que conheceu uma pessoa na internet. Ela é brasileira, não fala inglês muito bem, é tímida, missionária, religiosa, trabalhava como enfermeira voluntária e não podia andar (precisava de cadeira de rodas). Lars pede à família que a acolha em sua casa, uma vez que ambos, solteiros, não deviam compartilhar o mesmo teto. Para a surpresa da cunhada e do irmão, Bianca, a namorada de Lars, era uma boneca sexual. Ao menos para eles. Para Lars, ela era, definitivamente, uma mulher real.

A cunhada, em choque, sugere que a levem ao médico no dia seguinte sugerindo que a saúde de Bianca poderia estar prejudicada em função do estresse da viagem internacional. A médica que os acolhe é clínica geral e também é psicóloga. Depois de medir a pressão de Bianca, a médica sugere a Lars que ela se submeta a um tratamento de saúde. Para que ele aconteça, Lars precisaria levá-la ao consultório semanalmente. Preocupado com sua amada, ele se compromete com o tratamento de Bianca. A estratégia da psicóloga para que Lars aderisse aos encontros semanais consistia em tratar Bianca como a namorada dele, uma pessoa real.

A médica explica à família que Lars está experienciando um delírio, uma distorção da realidade. Ela explica: “o que chamamos de doença mental não é apenas uma doença. Pode ser uma forma de comunicação, uma forma de resolver um problema”. Ela fala, também, que para que haja fim, seria preciso que toda a família jogasse o jogo e tratasse Bianca como uma pessoa ideal, até que ela não fosse mais necessária para Lars. Karin e Gus resistem inicialmente, mas estão dispostos a qualquer coisa para ajudá-lo. Eles não apenas acolhem Bianca como a uma pessoa real, como também mobilizam toda a comunidade ao redor de Lars para assim o fazê-lo.

Seria Lars um louco? Que será necessário para alguém delirar ao ponto de enxergar vida numa boneca sexual e dar a ela o status de sua namorada, apresentá-la à família, aos companheiros da igreja, aos colegas de trabalho?

A mãe de Lars morreu durante o seu parto. O pai, adoecido pela perda da esposa, se torna emocionalmente ausente. Não dava aos filhos a atenção que toda criança precisava. Gus, o irmão mais velho, já havia vivido o suficiente para desenvolver suas habilidades sociais quando, com a morte da mãe, morre, ainda em vida, o seu pai. Ainda jovem e imaturo, parte tão logo pode a fim de fugir desse pai sofrido e ausente e abandona o seu irmão mais novo num ambiente adoecido. Lars perde, então, a condição de aprender a como estabelecer contatos e relações. Carrega por toda a vida essa dificuldade.

Por tudo isso, para Lars, o próprio contato físico é doloroso, queima. “É como quando você sai no frio e retorna para o calor”. Para ele, todo contato físico é assim, a exceção de Bianca. Naturalmente, podemos compreender, isso se dá por que Bianca não é de fato um ser humano. Bianca, em outras palavras, nada mais é do que uma projeção que Lars faz de si mesmo, ou seja, ele enxerga a si mesmo em Bianca.

Ela também perdeu a mãe no parto. Ela também é tímida e tem medo das pessoas. Ele afirma que Bianca não sente pena de si mesmo e que quer ser tratada como a uma pessoa normal, o que traduz, na realidade, o seu próprio desejo.

Gambiarra. Do dicionário, “Solução improvisada para resolver um problema ou para remediar uma situação de emergência; remendo.” É isso que Bianca representa para a vida social e emocional de Lars. Na incapacidade de estabelecer contatos reais, Lars precisa de uma alternativa e ele a encontra na fantasia. A forma que Lars encontra de comunicar sua solidão e resolvê-la, é fantasiando uma pessoa, projetando nela as suas necessidade e satisfazendo-as.

A parte mais emocionante do filme é quando toda a comunidade de Lars, mesmo espantada com a solução por ele encontrada, abraça Bianca como a um ser humano real. Bianca é levada para fazer trabalho voluntário com crianças adoecidas, dança na festa do trabalho, é levada às compras, ao cabeleireiro, é considerada nos jantares e eventos. Todos a tratam como tratam Lars. Tentativas de menosprezá-la são ignoradas por ele assim como as tentativas de mostrar a ele a falsidade da sua existência como pessoa. Lars ignora por que não suporta a ideia de ela não ser uma pessoa real. E por causa dela, por ter a companhia dela, ele se encoraja a participar dos eventos, a interagir, a viver em comunidade e, simplesmente, se encoraja a viver.

Vai dizer que Bianca não fez bem a ele? Vai dizer que delírio é doença? Para Lars, delírio foi uma saída, uma gambiarra da alma, um jeito de lidar com o que lhe faltava. Para ele fica evidente que a comunidade ao seu redor o acolhe, o aceita, o respeita. E por que ele não foi institucionalizado, por que pôde experimentar esse acolhimento, ele conseguiu socializar. Bianca se tornou dispensável.

Um certo dia, Lars encontra Bianca desacordada. A ambulância é chamada e ela vai para o hospital. Depois de ser atendida, Lars comunica à sua família que ela está morrendo. Ele se despede dela, agradecido por tudo o que viveu ao lado dela. Mas quando Bianca deixou de ser necessária, Lars pôde deixá-la morrer. E por que ela morre, a vida dele começa, agora com a condição de estabelecer contato reais, de construir relações reais.

Imagine se todos os dito loucos pudessem ser acolhidos assim. Se pudessem sentir a potência do acolhimento alheio, a aceitação, a compreensão, a empatia. Se pudessem estar expostos a um ambiente que lhes forneça as condições ideais para o seu desenvolvimento, se pudessem ter tudo o que um dia lhes foi privado. Agora imagine se Lars tivesse sido removido desse convívio, se tivesse sido trancafiado num leito de hospital abandonado na companhia da sua velha conhecida solidão. Se tivesse sido privado da existência de Bianca, se não pudesse tê-la assistido ser aceita por sua comunidade apesar de todas as semelhanças que ambos possuíam. Que saída Lars teria encontrado? Que solução ele teria criado? Como ele comunicaria a sua necessidade de presença? Como ele teria sobrevivido?

Que não nos falte amor, por que existem muitos Lars mundo afora!

 
 
 
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